‘Chora o apito
Recordação
De coisas vivas
Do coração’ Mundo Velho, de Sérgio Ricardo

Comecei a gostar de cinema brasileiro ainda criança. Influenciado pelo meu pai, Roberto Franco, assisti grandes clássicos da sétima arte dos Estados Unidos. ‘O Manto Sagrado’, com Richard Burton, de 1953, foi um dos primeiros vistos na companhia dele. Depois vieram quase todos do John Wayne, muitos do Steve McQueen e ‘A Morte Comanda o Cangaço’, longa de 1961, dirigido por Calos Coimbra (1927-2007) e estrelado por Alberto Ruschel. A partir deste filme pensei: “No Brasil se faz filme bom! E que filmaço!”. Parecia que estava vendo os faroestes, só que ao invés das pradarias do Oeste americano, a caatinga do Nordeste brasileiro. Os personagens não eram Paul, James, ‘Bud’ e a Escarleth, mas Severino, Raimundo, Zeca e a Rosinha, todos falados com o sotaque nordestino. A música não era jazz ou folk, mas baião com sanfona e ponteados de viola. Na busca pelos bons filmes brasileiros, descubro AmácioMazzaropi (1912-1981) com as comédias puras e nostálgicas, o ator Leonardo Villar (1923-2020), que interpretou Lampião e o Zé do Burro, e ator e cineasta Anselmo Duarte (1920-2009), vencedor da Palma de Ouro com ‘O Pagador de Promessas’ –inspirado na obra do dramaturgo Dias Gomes (1922-1999).

Mais tarde, já pensando no que iria fazer quando a idade chegasse e, com ela, a atividade profissional de um adulto, pensei em ser cineasta. Mas, pela região, não tinha faculdade de Cinema disponível. Só em São Paulo ou em outras grandes cidades. Me encaixei no Jornalismo e na Imprensa, e fico muito grato por estar entrando no meu 26º ano de atividade na Comunicação. Descubro, então, Glauber Rocha! Se estivesse vivo, no último dia 14 de março, Glauber completaria 82 anos. ‘Deus e Diabo na Terra do Sol’, sua obra-prima, não seria a mesma se não houvesse uma voz, um som e uma interpretação. Certa vez, quando um repórter brasileiro se identificou como do Brasil para entrevistar o cineasta Sérgio Leone (1929-1989), o italiano que reinventou o jeito de contar uma narrativa de western de modo cinematográfico, o gênio da sétima arte cantarolou: ‘Se entrega Corisco!’, reproduzindo a antológica música-tema de ‘Deus e Diabo na Terra do Sol’, interpretada pelo mariliense Sérgio Ricardo (1932-2020). Sérgio Ricardo, que nasceu João Lutfi em Marília, assinou a trilha de ‘Deus e diabo na Terra do Sol’ e para alcançar a lírica nordestina que Glauber queria para a música do duelo entre Corisco e Antônio das Mortes, o justiceiro que corta o sertão no encalço dos cangaceiros, buscou nas suas reminiscências infantis a rua São Luiz, no centro de Marília, onde seus pais mantinham um comércio. “Lembrei dos cegos cantadores, todos nordestinos, que paravam na frente da venda de nossafamília, na São Luiz, e em troca de uma comida, cantava uma moda sertaneja, ou declamava trecho musicado de cordel”, contou-me Sérgio Ricardo numa oportunidade em que estivemos juntos aqui em Marília.

Antes de partir, o talentoso Sérgio Ricardo viu e ouviu sua voz e sua música em outro fenômeno do cinema brasileiro: o aclamado ‘Bacurau’ (2019). O filme, que infelizmente ficou de fora da corrida pelo Oscar, dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, com Sônia Braga no elenco, encontra em ‘Bichos da noite’ – basicamente a música que dá título ao filme – a atmosfera ideal (a mesma que Glauber buscou para ‘Deus e diabo…’) para auxiliar na transmissão da sua mensagem cinematográfica. Sérgio, hoje, é saudade. Mas, como o mundo velho não tem porteira e o cinema é a luz para nossas mentes e inspiração para a alma: ‘Chora o apito / Recordação / De coisas vivas/ Do coração’. Viva, Sérgio Ricardo! Viva, João Lutfi!

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