Se você tivesse que indicar alguém que possa falar com propriedade sobre os fatos antigos que ajudaram a construir a história de Botucatu, que nome lhe viria à cabeça? Muitos devem ter respondido – e com razão – João Carlos Figueiroa.

Esse professor e radialista, nascido em Botucatu em 20 de agosto de 1944, transformou-se em uma espécie de guardião da história da cidade. Seu pai, Felix Figueiroa, trabalhava durante o dia no Grupo Escolar Cardoso de Almeida e à noite na Empresa Teatral Peduti. Sua mãe, Thereza Luiza Paganini Figueiroa, irmã do ex-prefeito Plínio Paganini, era do lar. O casal ainda teve outros dois filhos: Carlos Eduardo (Dinho) e Maria Elvira.

Felix e Thereza, pais de Figueiroa, no dia do casamento
(Foto: arquivo pessoal)
Os irmãos Carlos Eduardo, Maria Elvira e João Carlos Figueiroa
(Foto: arquivo pessoal)
Ainda jovem, Figueiroa já dividia atenção entre os estudos e o trabalho na imprensa (Foto: arquivo pessoal)

Reservado e de vida pacata, nosso personagem quase não se permite ter hobbies e dedica praticamente todo seu tempo à pesquisa e ao estudo da memória da cidade. “O certo seria eu me distrair mais, mas não consigo”.

Início no rádio

Figueiroa passou pelos bancos do Colégio Diocesano e formou-se professor, em 1963, no Instituto de Educação Cardoso de Almeida (IECA). Aos 12 anos já trabalhava como office boy na Rádio Emissora de Botucatu (PRF-8) e no jornal Correio de Botucatu, ambos pertencentes a sua família. No começo fazia serviços de escritório e de entrega.

Orador da turma de professorandos de 1963, em cerimônia no Cine Paratodos
(Foto: arquivo pessoal)

Me recordo de levar os originais para serem compostos na oficina do Correio de Botucatu que funcionava onde hoje está o restaurante Girassol. Depois ia buscar a prova e levá-la para os jornalistas e cronistas fazerem a revisão. Aprendi muito com Ari Simonetti, Ademar Potiens, Luiz Carlos Santos, entre tantos outros”.

No rádio, as mudanças constantes na equipe, ocorridas entre 1956 e 1960, lhe deram as primeiras oportunidades. Inicialmente na área esportiva. Com apenas 13 anos, o garoto já estava credenciado para atuar na cobertura dos Jogos Regionais da Sorocabana.

“No começo o máximo que podia fazer era anotar escalação, buscar resultados. Eu ia onde a equipe de esportes não ia e anotava para eles falarem. Mas numa dessa eu acabei entrando no microfone e falando. Ainda era moleque. Daí não parei mais porque o rádio vai lhe apresentando um monte de oportunidades que funcionam como desafios. Fiz de tudo um pouco. Até rádio teatro”.

Na Rádio Emissora com elenco de rádio teatro no final dos anos 1950
(Foto: arquivo pessoal)

A política

Nessa mesma época teve o primeiro contato com a política, que de certa forma viria a acompanhá-lo ao longo da vida. Muito por conta da atuação dos tios Octacílio e Plínio Paganini que chegaram a presidir a Câmara Municipal.

Em 1959, ano da morte de seu pai, Figueiroa foi levado para acompanhar a campanha do tio como forma de aliviar a tristeza. “Ali a política me picou. Foi momento da paixão. Participei de todos os comícios. Envolvia muita emoção. O Plínio teve infarto durante a campanha e ficou afastado por uns quarenta dias”.

Figueiroa recebeu influências do tio, o político e radialista Plínio Paganini
(Foto: arquivo pessoal)

Por anos fez a cobertura das sessões da Câmara. Conviveu com políticos diferenciados e acompanhou debates célebres em um tempo em que vereador não recebia salário. “Comecei a fazer esse tipo de cobertura muito cedo, porque a gente não falava nada. Só levava o microfone à boca do vereador que pedia a palavra. Isso acabou sendo um convite para ficar junto da política”.

Mudança

Na equipe de esportes fez de tudo um pouco. Foi repórter de campo, comentarista e apresentador de programas. Com o tempo, vários profissionais deixaram a emissora. Alguns contratados pela Rádio Municipalista, inaugurada em 1962. Muitos buscando uma nova vida em São Paulo.

Em 1964 eu trabalhava praticamente sozinho na área esportiva, produzindo e apresentando programa de segunda a segunda porque a equipe havia se desfeito. Esses desafios formam a gente”.

Figueiroa na cobertura do jogo que inaugurou a iluminação do estádio da Ferroviária (1962)
(Foto: arquivo pessoal)

Um ano antes, Figueiroa havia concluído o curso colegial. O momento era de decidir seu futuro. E na época Botucatu ainda estava mergulhada em uma profunda depressão econômica.

O que marcou minha geração foi a falta de perspectiva de trabalho para os jovens. O processo de esvaziamento da cidade se acentuou nesse período, fato que já vinha acontecendo a partir da década de 1940, quando Botucatu passou a sentir os efeitos da crise do café. Por isso que se fala que a Escola Industrial produziu os torneiros mecânicos de Osasco. E em outras atividades os jovens foram procurar seu caminho. Foi o que aconteceu comigo também”.

Em 1964, antes de completar 20 anos, desembarcava em São Paulo para tentar a sorte. Três dias depois com um recorte de jornal na mão, conseguiu emprego no escritório de uma empresa americana que fabricava conectores elétricos. Lá permaneceu por pouco tempo.

Trabalhou por sete meses na agência central do Banco Moreira Salles. Deixou o posto ao ser aprovado em um concurso público para atuar como correspondente na Secretaria do Governo. Lá ficou por longo período. Na mesma época resolveu dar aulas em uma escola rural no bairro Cocaia, região de Parelheiros, no extremo sul da capital.

O saudoso professor Kim Marques, que havia se formado comigo, dava aula em uma fazenda ao lado. Era uma atividade gostosa, mas não aguentei. Morava em Pinheiros e tinha que levantar às cinco da manhã para pegar um ônibus no Largo 13 ou então pegar o trem e descer no meio do caminho e voltar um pouco pela linha. Fiquei apenas com o emprego no governo”.

Movimento Estudantil

O Brasil já vivia sob o regime militar. À noite, Figueiroa frequentava o curso de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (USP). O envolvimento com o movimento estudantil rendeu-lhe dez anos de direitos políticos cassados.

Nos tempos de USP: ativista pela redemocratização
(Foto: arquivo pessoal)

Ao final do processo foi inocentado, mas as consequências ficariam para sempre. Além de não conseguir concluir o curso, perdeu a chance de ser eleito vereador em seu retorno a Botucatu, já na década de 1970. Figueiroa se lembra do episódio como se fosse hoje.

De volta à cidade fui fazer rádio outra vez. Na época cobria as sessões da Câmara, que funcionava na Costa Leite, ao lado do Colégio La Salle. Certa vez peguei uma carona com o vereador Progresso Garcia. Ele virou para mim e disse. Venha ser candidato a vereador na chapa do MDB. Você se elege com um pé nas costas. Na época ninguém queria sair e havia muita dificuldade para montar a chapa. Falei que estava impedido por conta do processo e ele logo entendeu que não daria certo”.

Com a anistia e o fim do estado de sítio, Figueiroa foi candidato em 1982, mas as condições já não eram as mesmas. “Vendo com o olhar de hoje, naquela eleição eu não tinha chance nenhuma. Gente que não se envolveu tanto com o movimento pela redemocratização, mas tinha mais prestígio, acabou se elegendo”.

Tentativas

Sua nova passagem pela PRF-8 deu-se até 1976. Mas sempre buscando conciliar com outras atividades que lhe garantissem reforço no salário. Ao lado de Neder Filho e Walter Paschoalick criou um curso preparatório para o exame de madureza que funcionou entre os anos de 1972 e 1973, no Colégio La Salle. Também chegou a dar aulas de História no curso pré-vestibular Carlos Chagas, entre 1972 e 1974.

O empreendimento que fez mais sucesso foi a Carimbadora e Gráfica JC, que funcionou de 1976 a 1983. “Lendo uma revistinha vi o anúncio de venda de uma máquina. Liguei e descobri que era de um radialista de Leme. Fui lá e comprei. A fábrica de carimbo foi a grande alternativa que me permitiu viver até 1983, sem deixar o rádio“.

Tentou enveredar por outras áreas, mas as tentativas naufragaram, segundo ele, por falta de planejamento. Montou uma livraria. Não deu certo. Chegou a ser dono de uma casa noturna chamada O Porão, que funcionou no subsolo da antiga Casa Royal, onde hoje está instalado o magazine Torra Torra. “Me meti nessa aventura sem ter recurso, sem ter capital. O resultado foi quebrar. Isso me arruinou por uns três anos”.

A chegada dos filhos – Fabio e Bruno – fez crescer a necessidade de encontrar alguma estabilidade. Resolveu voltar para São Paulo. As boas relações e a comprovada experiência lhe garantiram emprego na área pública, passando pela extinta Superintendência de Desenvolvimento do Litoral Paulista, ligada a Secretaria do Interior e pela Secretaria de Estado do Planejamento. Nesse período aproximou-se de José Serra, com quem viria a trabalhar em seu escritório político até 1994.

Surge o historiador

Ainda nessa época em São Paulo, Figueiroa começou a fazer pesquisas e estudar a história de Botucatu. Com as noites livres passou a frequentar a Biblioteca Mário de Andrade. O interesse inicial era sobre o estudo do topônimo que dava nome à cidade.

Trabalhou no tema até 1991 quando publicou uma pequena revista durante uma semana cultural organizada pelo escritor Francisco Marins no Centro Brasil-Itália. O material foi transformado no primeiro livro de sua autoria chamado Ybitu Katu – interpretação dos vocábulos indígenas que formam o nome Botucatu. Ali nascia o historiador.

Figueiroa vendendo sua primeira revista sobre a história da cidade
(Foto: arquivo pessoal)

De volta à terra natal recebeu convite para escrever em jornais sobre a história da cidade. Primeiro no Correio da Serra. Em 1994 publicou um artigo sobre a Revolução Tenentista de 1924. A boa repercussão o estimulou a seguir em frente. Depois veio o convite do jornalista Haroldo Amaral para colaborar de forma mais intensa no Diário da Serra.

“A redação ficava na Rua Amando. Havia uma equipe boa que incluía o Edil (Edilberto Gomes), João Fernando, Marcos Spernega, Jaime Sanches, Adriana Pessoa, Stefano Garzezi. Foi ali que de fato deslanchei nessa matéria”.

Em meados de 1997/1998 quando Amaral transferiu-se para A Gazeta de Botucatu colaborou por cinco anos seguidos organizando os famosos cadernos especiais que o jornal publicava no aniversário da cidade. A pedido do proprietário Adolpho Dinucci contou a história dos italianos em Botucatu, dos afrodescendentes, das igrejas Católica Protestante e do Poder Judiciário, que depois foram publicados em formato de livro.

Voltaria a colaborar com o Diário da Serra, praticamente até seu fechamento. “No período em que esteve forte, o Diário foi a melhor experiência de jornal impresso que Botucatu já teve. Posso falar porque conheço bem os jornais do século vinte”.

Oportunidade

Em 2005, já reconhecido como um dos principais historiadores da cidade, foi convidado pelo secretário de Comunicação Erick Facioli para organizar a reedição do livro “Achegas para a História de Botucatu”, de Hernani Donato. Ali começava uma nova etapa de sua vida.

A atividade jornalística, no meu caso, não era algo profissional. Era prazer de divulgação e somatória de conhecimento. A reorganização do ‘Achegas’ foi a primeira encomenda profissional que recebi nessa área. Assumi a tarefa e logo encontrei um problema. Não existiam arquivos da edição anterior, que era de 1985. A solução encontrada foi digitar o livro inteiro. O mesmo aconteceu com as imagens. Não havia arquivo. Busquei todas, com auxilio da Mariana Moscogliato e de outras pessoas”.

O livro foi lançado em 2008 em dois volumes. Obra primorosa. Nesse mesma época o secretário de Educação Gilberto Borges havia contratado uma editora para fazer uma cartilha sobre Botucatu. E coube a Figueiroa a missão de definir, organizar e produzir o conteúdo.

Esses dois trabalhos permitiram me aperfeiçoar. Mergulhei na história da cidade. Fiz outras publicações de forma independente e acabei ficando nessa área”.

Centro Cultural

Fala com especial carinho do período em que presidiu o Centro Cultural, de 2007 a 2015, quando teve a oportunidade de tirar da gaveta uma série de trabalhos que vinham sendo adiados por falta de tempo. “O Centro me deu mais prazer do que qualquer outra coisa. Foi muito importante para mim e para a cidade porque se transformou em uma referência da memória de Botucatu”.

Destaca a criação do Cine Clube, iniciativa que perdurou por cinco anos. E lembra-se de uma passagem marcante, quando a entidade completou 70 anos.

Fizemos uma grande exposição para comemorar a data. Estava sentado na mesa que dava para a porta do saguão onde estava a exposição. De repente vi um senhor de terno, olhando com dificuldade porque o ambiente estava à meia luz e já era tarde da noite. Levantei para acender a luz para que ele pudesse enxergar melhor. Ao me aproximar ele me olhou e disse que era o professor Paulo Assumpção Marques. Ninguém menos que o primeiro presidente do Centro Cultural. Quem poderia imaginar que ele estivesse vivo. Tinha 97 anos na época. Estava visitando Botucatu e resolveu passar por lá. Morreu há cerca de quatro meses com 103 anos. Foi uma alegria grande porque no dia seguinte convidei toda a diretoria e os associados do Centro Cultural para fazer uma festa para ele. Se eu programasse, não daria tão certo”.

Junto aos companheiros de Centro Cultural. Ao centro, o historiador Hernani Donato
(Foto: arquivo pessoal)

Novos trabalhos

Outra iniciativa de Figueiroa foi a publicação em livro dos artigos do Dr. João Nogueira Jaguaribe, considerado o primeiro historiador da cidade. Em 2016 tirou do papel um projeto que idealizava há dez anos. O livro “Boca do Sertão” que traz a história completa e resumida de Botucatu.

Em 2013, ao deixar a prefeitura onde atuou como secretário de Descentralização e Participação Comunitária, ingressou em um curso de Licenciatura em História à distância. Formou-se e agora, aos 75 anos, fala em fazer uma especialização.

Em 2016, Figueiroa tirou da gaveta um projeto de dez anos lançando o livro Boca do Sertão
(Foto: Carlos Pessoa)

Atualmente divide o tempo com a digitalização de livros raros, escrevendo textos sobre a história antiga da cidade e integrando uma equipe que vai transformar em livro a história do cinema em Botucatu.

“A verdade é que não fui historiador desde criancinha. A vida foi me convidando para fazer certas coisas e simplesmente aceitei fazê-las”.


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