Roger e seus parceiros de protesto foram até a represa de Guarapiranga, munidos de sacos de fio trançado. De longe, sentia-se o cheiro. Com capacidade para mais de 170 milhões de litros d’água, a represa recebia os dejetos de oito favelas ao redor de São Paulo, que vinham por meio de mananciais.

Dessa vez, pegaram leve: foram “apenas” 20kg de peixes mortos pela poluição do reservatório que abastece, até os dias de hoje, 4 milhões de pessoas em toda a capital. O grupo decidiu fazer uma visita ao governador da época, Orestes Quércia. Foram até o Palácio dos Bandeirantes para a entrega do “presente”, exigindo que ele assinasse o Decreto que daria início as leis de proteção aos mananciais.

Despejaram oito sacos de peixes apodrecidos nos portões do Palácio, para que assim pudessem chamar atenção da sociedade e da imprensa para o problema. Não demorou muito para a polícia aparecer. Com o país recém-democratizado em um período pós ditadura militar, Roger sentiu-se seguro o bastante para oferecer ao policial que tentava acabar com aquilo um belo buquê de rosas vermelhas. Pacíficos, os manifestantes se mantiveram ali por mais algumas horas.

Momento em que Nelson “Roger” de Souza entrega buquê de flores para o policial. (Foto: Acervo Pessoal)

Não adiantou.

“Para fazer os protestos nos reuníamos, chegávamos numa ideia e fazíamos pesquisa sobre. Eu sempre acreditei em todos os projetos, sempre cobrava a lei de proteção aos mananciais, que estava há 13 anos parada”, conta Nelson “Roger” de Souza.

Os manifestantes resolveram “radicalizar”. Encheram agora dez sacos de 100L de peixes, e tinham a ideia de escrever a sigla “SOS” no meio da Avenida Paulista. Contudo, mudaram de ideia e jogaram os peixes na rampa da Assembleia, como conta Nelson:”chegamos lá a tarde jogamos os peixes e eu deitei vestido de caveira no meio. Um cheiro terrível. Só que junto levamos desinfetantes, vassouras e sacos de lixo, porque o protesto não era contra a faxineira, né. Mas dessa vez não deu tempo de limpar, pois a tropa de choque apareceu e tivemos que sair correndo”.

Apesar do balde de água fria, seguiram em frente. Na semana seguinte, se acorrentaram às grades do Palácio dos Bandeirantes e exigiram mais uma vez que fossem recebidos pelo chefe do executivo estadual.

Duas horas depois, em meio a um inverno rigoroso da cidade da garoa, Roger tirou toda a sua roupa e se cobriu apenas com uma constituição de ’88. Resistindo ao frio intenso e chamando atenção de câmeras e jornalistas, bastou 22 minutos nu para que o governador finalmente aceitasse recebê-los. Em 15 minutos de reunião, Quércia assinou o Decreto Nº 32.954 de fevereiro de ’91, que finalmente colocaria em primeiro plano a questão do cuidado com os mananciais.

“São lutas que precisam ser constantes. Até hoje eu faço palestras em escolas, a gente cuida dos animais que são vítimas de abandono e é uma coisa que eu vou morrer dedicado a ela. Nada me desanima. As notícias são ruins e a gente se preocupa sim, mas é aí que temos que ficar mais fortes, para poder combater e ir à luta“, relembra orgulhoso o ambientalista.

Roger estava acompanhado por mais ou menos 20 pessoas. (Foto: Acervo Pessoal)

Um amigo inesperado e uma nova causa

Nelson de Souza, carinhosamente apelidado de “Roger”, é natural da cidade de Pirajuí. Em meios aos sabiás, pardais, pica-paus, beija-flores, cachorros e gatos, Nelson se apaixonou pela natureza em que estava inserido. “Desde criança eu tenho esse amor, cresci no meio da roça”, ele conta.

Entretanto, o pirajuiense não foi sempre ligado às causas do meio-ambiente.

Certo dia, seu amigo compositor e cantor sertanejo Zé Fortuna o convidou para fazer parte de um programa de rádio na capital paulista. Menino do interior, Roger embarcou nessa aventura. Lá, ficou hospedado em um pequeno hotel na Rua Triunfo, região hoje conhecida como cracolândia.

No dia seguinte, saiu para almoçar na casa deste amigo. Chegando lá, “estava a dupla Tião Carreiro e Pardinho cantando a música O Rio de Piracicaba. Também estava o famoso cartunista Henfil, de quem eu nunca tinha ouvido falar, e um velhinho de cabecinha branca e barba branca. Depois descobri que este senhorzinho era Paulo Freire“.

Muito desenvolto com as palavras e emocionado por estar ali, Roger começou a contar piadas e causos e isso chamou a atenção de Henfil: “ele me chamou para fazer um teste para atuar com ele. Fiz o teste na segunda-feira e na terça estreamos na Rede Globo com o quadro de humor chamado ‘Tv Homem’, no programa ‘Tv Mulher’. Trabalhei lá por quase um ano, mas tiraram do ar por causa da censura da época da ditadura”.

Henfil e Roger viraram amigos. Aliás, o apelido de Roger foi dado por Henfil, que achou o amigo a cara de seu cachorro de estimação (que era filho do cachorro de Elis Regina).

O ambientalista relembra que “uma vez ele me convidou para participar de um ecoprotesto lá no Rio de Janeiro, em ’86. Eu nunca tinha ido pro Rio, decidi ir para conhecer mesmo, não estava muito preocupado com a causa ecológica. Chegando lá, me encantei pela causa, voltei para São Paulo e organizei a minha primeira passeata em defesa do Guarapiranga. Desde então, não parei mais“.

Henrique de Souza Filho, mais conhecido como Henfil, foi um cartunista, jornalista, quadrinista e escritor brasileiro. De veia crítica, foi exilado junto a seus dois irmãos no período militar. Por ser hemofílico, precisava receber transfusões de sangue periodicamente e foi em uma dessas que contraiu o vírus HIV, que em ’88 o levou à morte.

Famosa charge de Henfil

Com pesar na voz, Roger relembra seu amigo com carinho ao dizer que “ele era uma pessoa maravilhosa, um gênio, um cara super tranquilo e inteligente, com o coração fantástico. Toda noite, eu nunca esqueço, ele comprava dez marmitex e saia distribuindo para pessoas em situação de rua. Quando ele morreu eu senti bastante, porque ele foi uma pessoa que me deu oportunidade. Quando eu fui pro teatro, ele quem me ajudou a fazer o cartaz e tirou do próprio bolso para me ajudar a pagar o primeiro aluguel. Só tenho gratidão“.

Em homenagem ao parceiro de risadas, de atuação e de protestos, Roger criou o Projeto Henfil Ecológico, para dar continuidade a veia crítica do amigo.

Outros protestos

Na liderança do Projeto, Roger e mais dois parceiros completaram o trajeto São Paulo-Rio de Janeiro a pé, durante 9 dias de caminhada. O foco era na proibição do metanol, que era utilizado na época como combustível. Em várias cidades do caminho eram acolhidos com cama e alimento, para que pudessem triunfar nesta jornada.

A TV Bandeirantes acompanhou todo o protesto, com duas entradas ao vivo por dia. “Chegando no Rio, fomos direto para a Câmara Municipal e no dia seguinte o metanol foi barrado. Foi uma vitória muito grande“.

Munidos de um caiaque, algumas varas de pescar e máscaras, decidiram navegar o poluído Rio Tietê. A cada 10km, coletavam água para ánalise. Por 1.126km seguiram em meio ao lixo, a podridão e a poluição urbana até o desague no Rio Paraná. “Esse rio é super importante para todos os ecossistemas. O Brasil é rico em água, temos 32% de toda água doce do planeta e você vê o tanto de problema que temos, as pessoas precisam perceber”, alertou o ambientalista.

Outra empreitada que o grupo se envolveu foi no estabelecimento de uma reserva ambiental de Mata Atlântica. “A partir da constituição de ’88, qualquer cidadão pode fazer uma lei. Na época, para nível estadual, precisava de 842 mil assinaturas. Comprei aqueles rolos de fazer embrulho para presente e fui recolhendo assinaturas. Consegui 1 milhão e 600 mil para a Reserva Ecológica da Jureia. Emendei um rolo no outro e abracei Assembleia com ele. Os deputados aprovaram rapidinho e essa é uma vitória que tenho um orgulho danado”.

Grupo recolhia assinaturas em uma banca na rua. (Foto: Acervo Pessoal)

Na gestão da então petista Erundina, o autódromo foi reformado. Para isso, a prefeitura derrubou todas as árvores do local. Incomodados com a situação, Roger e o seu grupo replantaram todas as árvores. “Hoje em dia eu ligo a Fórmula 1 só para ver as árvores no fundo, grandes e bonitas”, satisfeito sorri o ambientalista.

Nos protestos organizados pelo Projeto se vê muita audiência mas poucas pessoas. Organizados em grupos de 20 a 30 pessoas, a singularidade do Projeto Ecológico Henfil era a forma com que faziam as manifestações, que eram repletas de muita criatividade e desobediência civil.

Mesmo não sendo violentos, Roger chegou a ser preso uma única vez, no episódio em que ficou nu. Mas esta prisão virou até piada na época: “me levaram pro 3º DP e fizeram boletim de ocorrência. Só que fiquei feliz porque nunca tinha andado de helipcóptero. Nunca imaginei, o helicóptero pousando no Palácio para me levar para delegacia. Meus colegas morreram de inveja, ‘se eu soubesse tinha tirado a roupa também’, eles falaram”, relembra dando risada.  

Contando, ninguém acredita

Pela tamanha audiência, criatividade e efetividade de suas manifestações, Roger foi convidado para participar de diversos programas televisivos. Após ter ficado nu e andado de helicóptero, recebeu o convite para ser entrevistado no programa da Hebe Camargo. Coincidentemente, a outra atração do dia era o cantor Tim Maia, que bateu um papo com Nelson nos camarins, totalmente embriagado.

Jô Soares também se interessou pela sua história após a notícia de que o grupo tinha abraçado a companhia de água SABESP com 160 penicos de plástico. Neste dia, Roger conheceu o ex-jogador Neto e a falecida cantora Cássia Eller, que estava no começo da carreira.

Os penicos eram comuns nas margens dos rios poluídos que Roger defendia, como o Tietê, o Pinheiros e a represa Guarapiranga. (Foto: Acervo Pessoal)

O ambientalista também participou da primeira reunião e da primeira manifestação das Diretas Já, que pedia por eleições diretas. Seu amigo Henfil era o organizador, mas Roger não estava disposto a participar por ter medo da repressão policial.

“Mas quando o Henfil me passou a lista de presença e me disse ‘os nomes grifados em verde já estão confirmados’, bati o olho e vi o terceiro nome. Imediatamente, falei ‘pode contar comigo’. O primeiro nome era Chico Buarque de Hollanda, seguido por Fafá de Belém e depois meu ídolo, Raul Seixas“. O pirajuiense conta que Raul chegou completamente bêbado, com uma garrafa de vodka no bolso do seu paletó.

Avante!

O Projeto Ecológico Henfil durou até meados dos anos 2000. Cansado da vida corrida na capital, Roger já alimentava há um tempo a vontade de voltar para o interior. Por alguns anos residiu em Pirajuí, mas decidiu se mudar para cidade de Garça.

Palestra recente feita em parque. (Foto: Acervo Pessoal)

Lá, o Projeto mudou de nome e de forma. Agora, é Fundação EcoBrasil, que realiza de forma voluntária palestras escolares de educação ambiental, além de abrigar cães e gatos abandonados. “A gente resgata, castra e dá vermífugo. Todos os dias acordo cedo e faço limpeza, sem descanso. A gente trabalha feriado, sábados e domingo”.

Todavia, Roger ainda não está satisfeito e quer aumentar seu trabalho. Há poucas semanas conseguiu autorização da prefeitura de Garça para estabelecer um centro de educação embiental, atrás do colégio Sesi. São quatro lotes com 110m² de área.

Aos 61 anos, Nelson não está sozinho. Ele diz que “a minha esposa é uma guerreira, uma grande parceira e ela me dá todo o suporte”. Acompanhado por Margareth e por seu filho, o futuro enfermeiro Matheus Barbosa de Santos, ele tem planos para o futuro: “estou pensando em voltar a atuar. Atualmente, estou escrevendo um espetáculo chamado ‘A Vida É Uma Piada’, contando a historia da minha vida e pretendo fazer um stand up na região”.

Ele reitera que a Fundação EcoBrasil está aberta para fazer palestras educacionais e receber doações de ração, remédios ou qualquer outro mantimento animal. Cheio de orgulho, Roger declara: “continuarei fazendo humor e na causa ecológica, até o fim da vida”.

Roger mora atualmente em Garça, com sua esposa Margareth e seu filho Matheus. (Foto: Acervo Pessoal)

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